Esta é uma visão minha dos principais pontos que considerei relevantes no livro de
Zygmunt Bauman – Editora Zahar – 2003, Amor Líquido.
Apaixonar-se e desapaixonar-se
O amor e a morte – os dois personagens principais desta história sem trama nem desfecho, mas que condensa a maior parte do som e da fúria da vida.
O amor e a morte não têm história própria. São eventos que ocorrem no tempo humano – eventos distintos, não conectados (muito menos de modo casual) com eventos “similares”, a não ser na visão de instituições ávidas por identificar – (por inventar) – retrospectivamente essas conexões e compreender o incompreensível.
... a fé na regularidade do mundo e na previsibilidade dos eventos, indispensável para nossa saúde mental.
Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro.
Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amalgama irreversível.
E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro.
Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e continuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada.
Todo amor empenha-se em subjugar, mas quando triunfa encontra a derradeira derrota. Todo amor luta para enterrar as fontes de sua precariedade e incerteza, mas, se obtém êxito, logo começa a se enfraquecer – e definhar.
Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar.
Os produtos de consumo atraem, os refugos repelem. Depois do desejo vem a remoção dos refugos.
O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrifugo, ao contrario do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir alem, alcançar o que “está lá fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo.
Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se auto-perpetua.
Guiada pelo impulso (“seus olhos se cruzam na sala lotada”), a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, “sem preconceito”. É, antes de mais nada, eminentemente descartável.
Quando a insegurança sobe a bordo, perde-se a confiança, a ponderação e a estabilidade da navegação. À deriva, a frágil balsa do relacionamento oscila entre as duas rochas nas quais muitas parcerias esbarram a submissão e o poder absolutos, a aceitação humilde e a conquista arrogante, destruindo a própria autonomia e sufocando a do parceiro.
Uma “relação de bolso” é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade.
Mas nem mesmo os casamentos, ao contrario da insistência sacerdotal, são feitos no céu, e o que foi unido por seres humanos estes podem – e têm permissão para – desunir, e o farão se tiverem uma oportunidade.
Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a passagem de uma margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel das solidas pontes (ausentes).
Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade
Quando o sexo se apresenta como um evento fisiológico do corpo e a palavra “sensualidade” pouco evoca senão uma prazerosa sensação física, ele não está liberado de fardos supérfluos, avulsos, inúteis, incômodos e restritivos. Está, ao contrario, sobrecarregado, inundado de expectativas que superam sua capacidade de realização.
O que caracteriza o consumismo não é acumular bens (quem o faz deve também estar preparado para suportar malas pesadas e casas atulhadas), mas usá-los e descartá-los em seguida a fim de abrir espaço para outros bens e usos.
Qualificar os parceiros sexuais tornou-se o primeiro foco de ansiedade. Que tipo de compromisso, se é que algum, a união de corpos impõe? De que forma eles afetam o futuro dos parceiros, se é que afetam? O encontro sexual pode ser isolado dos demais propósitos da vida, ou será que ele vai (tender a, ganhar espaço para) esparramar-se pelo resto da existência, saturando-a e transformando-a?
... se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, “então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que aconteça.
Desse modo, não importa muito se as predileções sexuais (articuladas como “identidade sexual”) são “dons da natureza”ou “construtos culturais”. O que realmente importa é se cabe ao homo sexualis determinar (descobrir ou inventar) qual (ou quais) das múltiplas identidades sexuais melhor se ajusta a ele ou ela, ou se, tal como o homo sapiens no caso da “comunidade de nascimento”, ele ou ela está destinado (a) a abraçar esse destino e viver sua vida de uma forma que transforme uma sina inalterável numa vocação pessoal.
O homo sexualis esta condenado a permanecer para sempre incompleto e irrealizado – mesmo numa era em que o fogo sexual, que no passado se teria arrefecido, agora deve ser, espera-se, novamente insuflado pelos esforços conjuntos de nossas ginásticas miraculosas e de nossos remédios maravilhosos. A viagem nunca termina, o itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido.
E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez.
“Nós entramos em nossas casas separadas e fechamos a porta, e então entramos em nossos quartos separados e fechamos a porta. A casa torna-se um centro de lazer multiuso em que os membros da família podem viver, por assim dizer, separadamente lado a lado”.
Terminar quando se deseje – instantaneamente, sem confusão, sem avaliação de perdas e sem remorsos.
E o namoro pela internet, ao contrario da incomoda negociação de compromissos mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase) aos novos padrões de escolha racional.
Sobre a dificuldade de amar o próximo
... nenhum tormento pode ser maior do que aquilo que um único ser humano pode sofrer.
... todos os outros valores só são valores na medida em que sirvam à dignidade humana e promovam a sua causa.
A negação da dignidade humana deprecia o valor de qualquer causa que necessite dessa negação para afirmar a si mesma. E o sofrimento de uma única criança deprecia esse valor de forma tão radical e completa quanto o sofrimento de milhões.
... não pode haver atalhos que conduzam a um mundo feito sob medida para a dignidade humana, e ao mesmo tempo é improvável que o “mundo realmente existente”, construído dia a dia por pessoas já espoliadas de sua dignidade e desacostumadas a respeitar a das outras, possa algum dia ser refeito segundo essa medida.
O “relacionamento puro” tende a ser nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano, na qual se entra “pelo que cada um pode ganhar”e se “continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que estão proporcionando a cada uma satisfações suficientes para permanecerem na relação.
... a incerteza é a terra natal da pessoa ética e o único solo em que a moral pode brotar e florescer.
As pessoas da “camada superior” não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações se situam (ou melhor, flutuam) alhures. Pode-se imaginar que, alem de serem deixadas sós e portanto livres para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e tendo assegurados os serviços necessários para suas necessidades e confortos do dia-a-dia (como quer que os definam), elas não têm outros interesses na cidade em que se localizam as suas residências.
O mundo em que vive a outra camada de moradores da cidade, “inferior”, é o exato oposto do primeiro. Define-se, sobretudo por ser isolado daquela rede mundial de comunicação pela qual as pessoas da “camada superior” se conectam e com as quais suas vidas se sintonizam. Os habitantes urbanos da camada inferior estão “condenados a permanecerem locais”- e, portanto se espera, e deve-se esperar que sua atenção, repleta de descontentamentos, sonhos e esperanças, se concentre nos “assuntos locais”. Para eles, é dentro da cidade que habitam que a batalha pela sobrevivência e por um lugar decente no mundo é desencadeada, travada, por vezes ganha, mas geralmente perdida.
Os que podem, vivem em “condomínios”, planejados como se fosse uma ermida: fisicamente dentro, mas social e espiritualmente fora da cidade. “Supõe-se que as comunidades fechadas sejam mundos distintos. Nas propagandas que os anunciam propõe-se um ‘modo de vida completo’ que representaria uma alternativa à qualidade de vida oferecida pela cidade e seu espaço publico deteriorado”. Um traço muito importante do condomínio é seu “isolamento e distância da cidade... Isolamento significa separação daqueles considerados socialmente inferiores” e, como insistem os construtores e seus agentes imobiliários, “o fator chave para garanti-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros rodeando o condomínio, guardas trabalhando 24 horas por dia no controlo das entradas e um conjunto de instalações e serviços” ”destinados a manter os outros do lado de fora”.
Convívio destruído
O estado-nação, como observa Giorgio Agamben, é um Estado que faz da “natividade ou nascimento” o “pilar de sua própria soberania”. “A ficção aqui implícita”, assinala Agamben, “é o que o nascimento (nascita) imediatamente ganha existência como nação, de modo que não pode haver diferença alguma entre os dois momentos”. A pessoa nasce, por assim dizer, na “cidadania do Estado”.
... o nascimento é eleito a única forma de ingresso “natural” nessa nação, sem exigência de testes nem questionários.
Na medida em que o “Estado de direito” foi se transformando, de modo gradual mas irresistível (já que sob as constantes pressões da construção de legitimidade e da mobilização ideológica), no “Estado-nação”, este casamento se transformou num ménage à trois: uma trindade constituída de território, Estado e nação. Pode-se supor que o advento dessa trindade tenha sido um acidente histórico, ocorrida numa única e relativamente diminuta parte do globo; mas uma vez que essa parte, embora pequena, veio a reclamar a posição de metrópole dotada de recursos suficientes para transformar o resto do planeta em periferia, e arrogante o bastante para esquecer ou desacreditar suas próprias peculiaridades, e como é prerrogativa da metrópole estabelecer e impor as regras pelas quais a periferia é obrigada a viver, a superposição/mistura de nação, Estado e território se tornou uma norma de vinculação global.
Não pertencem verdadeiramente ao país em cujo território foram montadas suas cabanas portáteis. São separados do restante dele por uma cortina de suspeitas e ressentimentos que é invisível, mas ao mesmo tempo espessa e impenetrável.
O fato de outros discordarem de nos (não prezarem o que prezamos, e prezarem justamente o contrario; acreditarem que o convívio humano possa beneficiar-se de regras diferentes daquelas que consideramos superiores; acima de tudo, duvidarem de que temos acesso a uma linha direta com a verdade absoluta, e também de que sabemos com certeza onde uma discussão deve terminar antes mesmo de ter começado), isso não é um obstáculo no caminho que conduz à comunidade humana. Mas a convicção de que nossas opiniões são toda a verdade, nada alem da verdade e, sobretudo a única verdade existente, assim como nossa crença de que as verdades dos outros, se diferentes da nossa, são “meras opiniões”, esse sim é um obstáculo.